Crônica: Cirurgia,  espiritualidade e as pequenas coisas da vida

Crônica: Cirurgia,  espiritualidade e as pequenas coisas da vida

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Crônica: Cirurgia,  espiritualidade e as pequenas coisas da vida

Por Pablo Casarino

Sempre fui um dependente inveterado de descongestionantes nasais e drogas para todos os tipos de “its”: bronquite, sinusite, rinite, amigdalite e afins. Nunca fui uma pessoa que conhece o que é respirar bem, aliás, sempre fui um respirador bucal que chegava sempre depois dos amigos nas trilhas de bicicleta com a língua arrastando no chão e prestes a cuspir o coração pela boca. Carreguei esses incômodos respiratórios que me faziam acordar já cansado. Em uma ocasião engraçada quando cheguei da África e me cansei daquela correria de São Paulo resolvi largar tudo e me mudar para um monastério. Digo ocasião engraçada porque quando iniciei minhas atividades dentro daquele lugar, tive acesso às fichas tanto das pessoas que ali moravam como das que por ali passavam para visitar. Uma coisa me deixava intrigado em algumas fichas. A observação “RM” do lado de alguns dos nomes inclusive do meu. Fiquei com aquelas duas letras na cabeça, porém sem falar com ninguém. Lembro-me que todos os quartos que eu ocupava, eram longe da sede. No mato. Lugares lindos e que eu adorava. Pensava que eu estava sendo privilegiado. Que estava sendo submetido a trabalho de grande espiritualidade. Éramos trocados constantemente de quarto justamente para não nos apegarmos nem ao local que dormíamos. Trabalhar o desapego de forma nunca trabalhada. Porém, no decorrer do momento em que fui me adentrando naquela vida, conhecendo um pouco mais daquele lugar, fiquei sabendo que as tais letras RM, referiam a "Ronca Muito". Entendi o porquê de eu sempre estar instalado em quartos longe dos monges e visitantes. Assim meus urros noturnos só incomodavam os coelhos, pássaros e outras espécies animais que eram meus vizinhos. Quando voltei pra vida aqui fora,  percebi que não poderia conviver com esse título de RM pela saúde e até porque ninguém conseguia dormir nem em outros cômodos da casa quiçá no mesmo quarto que eu. Resolvi submeter-me a uma cirurgia de desvio de septo nasal para minimizar os trovões noturnos. Confesso que mesmo por se tratar de um procedimento considerado simples, fiquei ansioso alguns dias. Porém, ao receber a ligação que dizia que a cirurgia tinha sido antecipada, a ansiedade se transformou em alívio. Cheguei ao hospital no horário marcado e continuava sem nenhuma preocupação até porque confio muito no médico que iria fazer o procedimento. Entrei em uma sala onde troquei minhas roupas pelas que eu usaria na cirurgia. Depois em outra cheia daqueles aparelhos que não sabemos que serventia tem e um casal de enfermeiros se apresentou e foram me explicando os procedimentos enquanto aplicavam sedativos nas veias, no músculo perto das nádegas,  além da administração de comprimidos. Todos faziam sentir-me sempre calmo. E comecei a sentir aquela sensação de paz absurdamente gostosa. De ouvir e ver tudo que se passava mesmo parecendo estar dormindo. Lembro-me que no rádio baixinho tocava: “...Não preciso nem dizer Tudo isso que eu lhe digo Mas é muito bom saber Que eu tenho um grande amigo...” Música do Roberto Carlos e começou a passar um filme na minha cabeça. Lembrava-me dos amigos que estão longe, mas que povoam minha mente e moram no coração. Das aventuras e apuros. Outra canção do mesmo cara começou a tocar: “Esse amor demais antigo amor demais amigo, que de tanto amor viveu. Que manteve acesa a chama, da verdade de quem ama antes e depois do amor. E você amada amante, faz da vida um instante ser demais para nós dois...” Essa última era apenas instrumental que eu cantava intuitivamente. Lembrava-me de toda a letra já que foi um dos grandes hits que meu pai ouvia enquanto eu era pequeno juntamente com muitos LPs do Chico Buarque, Oswaldo Montenegro, Elis Regina, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes, Maria Betânia, entre outros que foram responsáveis pela minha iniciação musical. Outras canções eu já não sabia se ouvia de verdade ou se era apenas uma reprodução da minha mente. Um delírio visto o quão relaxado que eu estava no momento. Após passar com a ajuda dos enfermeiros para uma maca que me transportou para outra sala e posteriormente para outra que foi a que permaneci durante o procedimento cirúrgico, ouvi a voz do médico me perguntando se estava tudo bem comigo. Respondi que sim. Afinal eu me sentia muito bem. A partir daquele momento, toda essa crônica começou a ser construída na minha mente. Pensava na pequenez do ser humano perante o universo. De como nos tornamos incapazes diante de situações como a que eu estava passando. Estava totalmente entregue nas mãos de profissionais, sedado e impotente. No meu caso, nas mãos de profissionais que, como eu disse anteriormente, eu confiava plenamente. Comecei a dar ainda mais valor nas pequenas coisas da vida. Na chuva que bate na vidraça da janela, o sol de cada manhã, o barulho dos pássaros e o assovio do vento. São essas as verdadeiras coisas que importam em meio à atribulação da semana de trabalho. Acordei na certeza de poder, após minha recuperação, respirar um ar mais puro que encherá meu pulmão de paz e alegrias.  

Pablo Casarino, jornalista, poeta e cronista Natural do município de Campo Belo, Sul do Estado de Minas Gerais, Pablo Casarino cursou Comunicação Social, habilitação em jornalismo na Pontifícia Universidade Católica (PUC/MG). Amante das artes, desde criança fez da produção de crônicas e poesias seu passa tempo. Enquanto assessor de comunicação na Assembléia Legislativa de Minas Gerais pôde participar de Saraus e conhecer a efervescência do cenário cultural de Belo Horizonte. Em suas andanças morou em São Paulo e outros municípios do país, sempre buscando absorver os costumes e a cultura dos lugares por onde passava. Foi docente do curso de comunicação social em Moçambique na África, estreitando os laços com a poesia de escritores daquele continente. Ficou em terceiro lugar na premiação do 1º Prêmio Internacional de Poesia – Casa de Cultura Manoel Antônio de Carvalho (Casa Mac) de Belo Horizonte, com o poema Permissão, publicado em uma antologia. Há três anos reside em Santa Catarina. Atualmente é jornalista da Valemais Comunicação e do Portal Éder Luiz.

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