Suspeito de aliciar adolescente do Oeste fez vítimas em outros estados: ‘Perdi muitas coisas’

Homem foi preso nesta semana no Rio Grande do Sul.

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Foto: Montagem/ND
Foto: Montagem/ND

A lista de vítimas de Jean Alberto Mota Mastrascusa, de 35 anos, preso por suspeita de aliciar uma adolescente de 17 anos que estava desaparecida em Chapecó, no Oeste de Santa Catarina, é maior do que se pode imaginar. O homem foi preso pela Brigada Militar na tarde da segunda-feira (3), em um supermercado, em Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul.

O portal ND+ teve acesso a um grupo intitulado “Unidos por Justiça”, que reúne mulheres que afirmam terem sido vítimas do homem ainda na adolescência. São pessoas espalhadas pelo Brasil.

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Entre tantas lembranças, as vítimas relatam episódios de violência, especialmente sexual, sofridas quando foram aliciadas pelo homem. As mulheres – e suas famílias – buscam com o grupo no WhatsApp encontrar forças para alcançar Justiça.

As vítimas possuem perfis semelhantes: adolescentes, ruivas e que enfrentam ou enfrentaram algum tipo de problema pessoal. O ND+ teve contato com uma das vítimas de Jean. De forma rica em detalhes, Giovanna Aparecida Rangel contou os momentos de terror que viveu nas mãos de Jean.

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Detalhes de quem viveu na pele

Giovanna Aparecida Rangel tinha apenas 15 anos quando conheceu Jean, na época com 30 anos. Ela passava por problemas pessoais e foi apresentada a Jean por um amigo após ele se passar por “psicólogo”.

Os primeiros contatos dos dois aconteceu por meio de jogos de RPG (Role Playing Game), que significa “Jogo de Interpretação de Papéis”. A partir dali as conversas foram se intensificando e Jean, ou Gao, como ele se apresentava, passou a oferecer atendimento psicológico gratuito para Giovanna por meio da internet.

“Os contatos foram aumentando e comecei a me sentir confortável para contar sobre os problemas que estava enfrentando. Ele tentava ajudar, descobrir a raiz de tudo”, contou Giovanna em entrevista exclusiva ao ND+.

De início, parecia uma relação tranquila e de confiança, mas, no fundo, a adolescente pressentia que algo não era normal. “Não sabia identificar se isso era a minha intuição ou uma paranoia”, conta.

Com a intensidade das conversas, Gao começou a dizer para Giovanna que ela era a garota perfeita para ele. Ela lembra que achava estranho, principalmente pela diferença de idade entre os dois, mas tentava manter a amizade. “Ele era muito sutil no que falava”.

Na época, Gao chegou a entrar em contato com a mãe de Giovanna, Cecília Rangel, dizendo estar apaixonado pela garota. “Tudo isso por meio de mensagens, mas eu nunca tinha visto foto dele”, revela a mãe.

Em um instinto materno de proteção, Cecília falou com a filha sobre a relação dela com Gao. “Ela falou que não queria nada com ele. Disse que eles conversavam e ele vivia insistindo, mas ela não retribuía. Ali começaram as ameaças”, relata.

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O primeiro afastamento

Após a troca de mensagens, Cecília resolveu mudar o número de celular da filha. “Foi um tempo tranquilo”. Porém, a paz durou pouco. Gao descobriu o contato novo de Giovanna e com as conversas retornaram as ameaças, principalmente contra a família.

A mãe interferiu e chegou a dizer que levaria tudo à delegacia de polícia. Pela segunda vez trocou o número de telefone da filha. “Pedi para ela não ter mais contato com ele”, recorda.

Foram cerca de dois meses sem nenhum tipo de vinculo, mas Gao conseguiu o número de telefone de Giovanna e voltou a falar com ela. “Ele conseguiu meu novo contato porque já tinha muito acesso às minhas coisas. Conseguiu acessar meu e-mail, redes sociais, fez um trabalho de hacker sem que eu soubesse”, revela Giovanna, que hoje está com 20 anos.

Com um discurso de arrependimento e saudades, Gao se reaproximou dizendo que sentia falta de Giovanna. Por meio da empatia e de forma sorrateira, criou na adolescente o sentimento de pena e compaixão. “Era uma relação de troca. Ele me contava os problemas que passava e eu acabava confiando em contar o que eu estava vivendo”.

Aos poucos, a relação entre Giovana e Gao foi se intensificando, e ela passou a confiar cada vez mais nele. Ele se mostrava um ouvinte atento, sempre disposto a ajudar com os problemas e oferecer conselhos.

“Ele fala bem. Sabe como colocar as palavras e mexe com o íntimo dessas meninas. Descobriu o ponto fraco da minha filha. Dominava ela aqui dentro da minha casa. Vigiava 24 horas pelo celular e ela não falava nada porque ele ameaçava fazer algo contra o irmão mais novo”, afirma a mãe de Giovanna.

Pela segunda vez Cecília trocou o número de telefone da filha a fim de afastá-la dele de uma vez por todas. Porém, Gao usava de gaslighting* para convencer a adolescente a permanecer em contato.

* O gaslighting é uma tática de manipulação psicológica na qual uma pessoa – ou grupo – tenta semear dúvida na mente de outra pessoa, levando-a a questionar suas próprias percepções, memórias e sanidade.

“Ele plantava dúvida do que eu fazia ou deixava de fazer, por exemplo. Falava que eu tinha insultado ele e me persuadia até eu ficar em dúvida. Se aproveitava do fato do meu TDAH (Transtorno de déficit de atenção com hiperatividade) e, como não tenho a memória boa, me manipulava contra eu mesma dizendo que eu tinha que sofrer as consequências”, recorda Giovanna.

Além do gaslighting, Gao continhava a ameaçar a família da adolescente. Para colocar medo, fez um dossiê com informações sobre os pais e irmãos e enviava a localização do local de trabalho e onde moravam.

“Ele não falava o que era capaz de fazer, apenas mandava, por exemplo, o número do meu pai porque sabia que eu tinha medo. As ameaças eram para me manter sob controle”, afirma.

O dia do desaparecimento

Era domingo, 26 de julho de 2020. O pai de Giovana saiu para trabalhar e Cecília acordou cedo para ir ao supermercado. Seria dia de sopa na casa da família. “Não acordei eles [os três filhos] porque era domingo e queria deixá-los dormir. Fiz o almoço e quando fui chamá-los a cama dela estava vazia”, conta.

Na escrivaninha ao lado ela encontrou um bilhete deixado pela filha. As palavras eram carregadas dos piores adjetivos possíveis. A adolescente se referia aos pais como os piores monstros do mundo. O recado causou espanto na mãe. “Falei: essa não é minha filha”.

Cecília viu o desespero bater e ligou para o pai de Giovanna. Os dois entraram em contato com diversas pessoas. Um casal de compadres foi até a casa da família e questionou se Giovanna tinha um notebook. “Tínhamos acesso a tudo e quando abrimos vimos em uma mensagem que ela havia pego um carro de aplicativo às 4h30 da manhã sentido ao Aeroporto de Viracopos, em Campinas”.

“Giovanna nunca pegou um carro de aplicativo de Jundiaí para São Paulo, como ele foi parar em Viracopos? Para mim, ela não tinha fugido de casa. Ligamos no aeroporto e nos passaram para a Polícia Federal. Enviamos fotos dela e descobrimos que ela embarcou em um avião para Porto Alegre”, relata.

A família conseguiu as imagens de Giovanna chegando ao aeroporto em Porto Alegre. “Reconheci a roupa e a mochila que ela estava. Bateu o desespero porque não temos familiares e amigos em Porto Alegre. Não sabíamos o motivo dela ter ido para lá. Então, jogamos a foto dela na internet avisando sobre o desaparecimento”.

A chegada em Porto Alegre

Giovanna conta que foi induzida por Gao a ir para Porto Alegre encontrá-lo e ainda falou o que ela deveria escrever no bilhete deixado aos pais. “Citou os pontos eu deveria colocar e pediu fotos da carta para ele analisar e ver se estava boa o suficiente”, conta.

Na época ela já estava com 17 anos e diz que foi ao encontro dele com medo das ameaças e do que ele poderia fazer com seus familiares. Gao comprou a passagem para que ela fosse até Porto Alegre encontrá-lo e começou a plantar a ideia de fugir de casa porque, segundo ele, os pais dela eram muito ruins para ela.

Giovanna saiu de casa em um carro de aplicativo por volta das 4h da madrugada. “Ele ficou o tempo todo em ligação comigo para ter certeza que eu não desistiria de última hora. Ficava me encorajando a ir. Não deixava desligar a ligação por nada até que eu entrasse no avião”, detalha.

Enquanto esperava o voo a adolescente diz que sentiu medo. Não sabia o que estava por vir. “Estava indo contra a minha vontade porque tinha medo das ameaças. Não conseguia nem pedir ajuda porque ele queria que eu ficasse o tempo todo atualizando ele sobre onde eu estava”.

Do aeroporto em Porto Alegre, Giovanna pegou um ônibus até o Terminal Triângulo, localizado na Avenida Assis Brasil, uma das principais de Porto Alegre. “Ele me explicou o caminho que teria que fazer. Quando cheguei na cidade tive que tirar a bateria e o chip do lugar para ninguém conseguir achar minha localização”.

Foram 12 dias com o celular desligado. Giovanna diz que perdeu a noção de tempo. Quando encontrou com Gao, ele disse que precisava alugar um kitnet para os dois. “Falou que eu teria que mudar a aparência. Na época eu era ruiva e, segundo ele, estava chamando muito a atenção e não era o que ele queria. Então, pintei o cabelo de preto porque era uma cor mais comum”, diz.

Dias difíceis

Giovanna diz que algumas coisas que viveu em Porto Alegre é como se tivessem sido apagadas de sua mente. Ela chega a acreditar que Gao tenha usado de hipinose para isso.

Porém, lembra que na maior parte do tempo os dois ficavam no kitnet jogando RPG. Saiam apenas para buscar comida em um restaurante ou procurar pontos de vendas para os pendrives que Gao gravava com músicas e revendia. “Sai sozinha apenas uma vez, quando fui comprar cigarro a mando dele. Fora isso ele não me deixava sozinha”.

Além de manter Giovanna longe do contato com qualquer familiar ou amigo, Gao ainda a forçou a manter relações sexuais com ele.

“Não era o que eu queria, mas com um homem de 180 quilos me forçando não tinha o que pudesse fazer. Ele nunca chegou a me agredir, pelo que me recordo, mas no exame de corpo de delito eu estava com vários roxos pelo corpo, só não lembro como surgiram”, recorda.

Giovanna revela que após um tempo de convivência com Gao, ele assume ser pedófilo. “Afirma que tem conteúdos de pornografia infantil. Inclusive, ele usava as situações que passou como vítima e depois assumia que iria me cafetinar pela internet e ganhar dinheiro em cima de mim”.

A liberdade

Giovanna e Gao haviam saído para procurar pontos de venda para os pendrives. Era auge da pandemia de Covid-19 e ele aproveitava o uso de máscaras para esconder o rosto. Ambos haviam parado em uma escadaria de acesso a um banco quando um segurança os chamou a atenção por estarem atrapalhando a passagem das pessoas.

Foi ali naquela troca de olhares com Giovanna que o segurança supostamente a reconheceu. “Fiquei parada olhando e o segurança ficou me encarando. Mas vi que ele chamou outro homem, apontou e cochichou. Eu dei graças a Deus porque queria sair daquela situação”, conta.

Na manhã seguinte dois policiais foram até o kit net onde Giovanna e Gao estavam. As ordens eram para que ambos fossem à delegacia de Polícia Civil porque ela estava sendo procurada pela família. “Senti que eles [os policiais e Gao] já se conheciam porque começaram a falar como se fossem amigos”.

Ela afirma que eles foram levados para salas separadas. Ela foi ouvida pela delegada e uma escrivã, mas sem a presença de um responsável ou representante do Conselho Tutelar. Após o depoimento, a adolescente foi levada para um abrigo até a chegada do pai, no dia seguinte.

“Eu estava dopada. Era tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo que não conseguia sentir muita coisa. Estava vivendo no automático”.

A volta para casa

Quando viu o pai, Giovanna diz que ficou aliviada e arrependida por toda a situação. “Alívio e a culpa de ter visto o que fiz com eles”. Ao voltar para casa, em Jundiaí, foi levada para o Hospital Universitário, onde foi avaliada por uma equipe médica.

Ela foi encaminhada à psicóloga e ginecologista. Até hoje Giovanna faz acompanhamento com terapeuta por conta dos traumas daquele período. Depois disso, Gao nunca mais tentou nenhum tipo de contato.

Apesar disso, Giovanna precisa lidar com os traumas e medos que perduram. “É uma mistura de sentimentos. Autocobrança e culpa. Hoje em dia eu tenho raiva dele por tudo que fez comigo e também com as outras meninas. Eu sei o que passei, sei o que elas passaram e dói muito”.

A jovem afirma que perdeu um momento importante de sua vida. Gao lhe roubou muitas coisas, entre elas o direito de escolher com quem teria a primeira relação sexual, uma decisão importante na vida.

“Esse é o padrão que ele escolhe: adolescente, virgem, que não tem conhecimento da vida, com problemas pessoais. Eu sou muito julgada até hoje, como se a culpa de tudo que aconteceu fosse minha. Quero que as pessoas saibam e entendam realmente o que aconteceu comigo e possam perceber que fui uma vítima”, acrescenta.

A mãe de Giovanna diz que não é fácil reviver os momentos de dor que a família passou. “Peço a Deus todos os dias por justiça. Ele é um monstro. Coloca na cabeça das adolescentes que os pais são as piores pessoas do mundo. Faz parecer que ele é o certo e nós, pais, os errados. Ele acabou com a vida da gente e a vida dela [Giovanna]”.

Sonhos para o futuro

Giovanna ainda mora com a mãe, mas pretende sair de casa em busca de seus sonhos. Hoje, com 20 anos ela tem um namorado que a apoia e ajuda a superar os traumas daquela época.

A jovem atualmente trabalha como repositora em um supermercado, mas para o futuro pretende cursar a faculdade de psicologia. “O foco é se preparar para entrar na área da perícia criminal ou necropse como auxiliar de necropsia. Estou me planejando para seguir carreira”.

Giovanna pretende viver a experiência de morar sozinha e, futuramente, com o namorado, para seguir a vida. Filhos não fazem parte dos planos da jovem, mas ela não descarta a ideia mudar futuramente. Por enquanto, ela pretende trabalhar, estudar e alcançar a independência.

Caso da adolescente de Chapecó

Giovanna ficou apenas 12 dias desaparecida, mas a adolescente natural de Chapecó ficou sumida por 44 dias. Ela desapareceu no dia 21 de maio e foi encontrada nesta segunda-feira (3), em Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, cerca de 700 quilômetros longe de casa.

O caso está sendo investigado pela DPCAMI (Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso), por meio de coordenação da delegada de Polícia Civil Lisiane Junges.

Após a prisão de Jean e a localização da adolescente, a delegada revelou algumas informações sobre a investigação, que segue em andamento. Segundo a delegada, a adolescente e Jean se conheceram por meio da internet alguns meses antes do desaparecimento.

A investigação apurou que ele saiu de Chapecó no dia 20 de maio e a adolescente deixou a cidade no dia 21.

“Passaram por Erechim, Santa Maria e Santana do Livramento. No dia 8 de junho entraram no Uruguai e, a partir disso, a investigação necessitou de um trato internacional para que o suspeito pudesse ser preso fora do Brasil. Com a ajuda da Interpol brasileira e uruguaia diligências continuaram na busca pelos dois”, detalhou a Lisiane.

Nos últimos dias eles voltaram até Santana do Livramento e Jean acabou preso e a adolescente localizada em um kit net, nesta segunda-feira (3). O local era sujo e insalubre, conforme detalhou a Brigada Militar do Rio Grande do Sul, responsável pela prisão de Jean e pela localização da garota.

Quando sumiu a menina estava com os cabelos ruivos, mas ao ser localizada estava com eles escuros. A adolescente passou por avaliação médica e está bem de saúde. Ela está acompanhada pelo Conselho Tutelar até que volte para Chapecó. A expectativa da DPCAMI é que ela retorne ao município o quanto antes com Jean, que permanece preso preventivamente.

“O mandado de prisão expedido em desfavor dele é por produção, comercialização e divulgação de material sexual infanto-juvenil”, explicou Lisiane.

A delegada comentou que teve conhecimento de crimes semelhantes em outros estados brasileiros. “Existem informações, de forma não oficial, de que esse é o modus operandi adotado pelo criminoso e a conduta dele vinha sendo investigada em outros estados, mas a DPCAMI se envolveu pontualmente no sumiço da adolescente”, citou.

Lisiane acrescentou que Jean é natural de Porto Alegre, mas já morou em outros estados onde teria supostamente cometido crimes semelhantes. “É um homem que convenceu a adolescente a sair. Não houve um rapto ou sequestro. Ele se dedicou de forma bastante sofisticada na fuga, o que demandou trabalho complexo por parte da equipe da DPCAMI, mas logramos êxito com a localização e prisão”, finalizou.

A investigação segue em andamento e outras vítimas devem ser ouvidas para montar o quebra-cabeça do crime que aconteceu em Chapecó. A reportagem do ND+ não localizou a defesa de Jean, que deve ser transferido para a penitenciária de Chapecó nesta semana.

Fonte:

ND+

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